A química dos saneantes e a COVID-19
- 08/08/2020
Nas últimas décadas, a humanidade vem enfrentando diversas pandemias, sejam elas de origem bacteriana ou viral. Porém é a COVID-19, uma enfermidade causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, acrônimo de Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2; em inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), que se apresenta como a grande protagonista da pandemia contemporanea, conforme detalhado no artigo em foco de Lima et al.,1 e em centenas de recentes artigos sobre este gravíssimo problema que o mundo hoje procura enfrentar, dentre os quais citamos três, de Li, Q. et al.; 2 Li, J. Y. et al.3 . e Boopathi et al. 4
Os coronavírus são vírus de RNA de fita simples, esféricos, com cerca de 125 nm de diâmetro e revestidos por um envelope lipoproteico. O SARS-CoV-2 tem 4 proteínas estruturais relacionadas à regulação de função e estrutura viral: a envelope (proteína E), a membrana (proteína M), a spike (proteína S) e a nucleocapsídeo (proteína N).1 Quanto à aparência, esses vírus apresentam projeções em forma de espículas formadas por trímeros da proteína S, que geram aspecto de coroa, de onde deriva o nome corona1, segundo Huang et al.5
Uma vez que a proteína S se liga ao receptor enzimático da célula humana, logo o vírus se funde à célula e libera seu material genético (o RNA viral) que rapidamente se copia e é liberado no organismo do hospedeiro para repetir o processo e propagar a sua infecção.
Devido à fácil disseminação, contaminação e ausência de vacinas e medicamentos eficazes, seguros e que já estejam acessíveis para toda a população, o combate da COVID-19 tem se focado no tratamento de sintomas e em medidas simples de prevenção, como o uso de máscaras, o isolamento e distanciamento sociais, além do uso de agentes químicos saneantes, recomendados por órgãos competentes, empregados na higienização frequente das mãos, objetos e superfícies.1
Os autores Lima et al.1 apresentam cinco dos principais saneantes, atualmente, recomendados pelos órgãos nacionais e internacionais de saúde em combate à proliferação da SARS-CoV-2, bem como também os conceitos químicos envolvidos na sua atuação biológica.
O primeiro saneante mencionado é o do grupo dos álcoois como agentes biocidas. No Brasil, tais álcoois são os compostos químicos etanol e isopropanol, que devido às suas altas volatilidades são comercializados como álcool em gel, assim diminuindo o risco de incêndios domésticos.1 Estes compostos são bastante solúveis em água devido as fortes forças de atração intermolecular entre a sua extremidade polar e o dipolo negativo, especificamente o flúor, o oxigênio ou o nitrogênio, de outros compostos polares.
No tocante à atuação biológica, a solução química alcoólica proveniente do saneante atua diretamente nas interações intermoleculares das estruturas tridimensionais da proteína, rompendo as ligações de hidrogênio e, consequentemente, outras interações mais fracas e, assim, formando novas interações com a molécula de etanol. Este processo inativa as funções específicas da proteína e é denominado desnaturação proteica.
O segundo saneante descrito, os sais quaternários de amônio, compõe o grupo dos compostos químicos surfactantes, isto é, substâncias anfifílicas, as quais apresentam, em sua estrutura, uma parte polar e hidrofílica e outra apolar e hidrofóbica.1 São largamente utilizados como insumo em detergentes, amaciantes e diversos produtos de limpeza e cuidados pessoais. Estruturalmente, os sais de quaternários de amônio são compostos por uma parte catiônica que consiste em um átomo de nitrogênio central, ligado a quatro grupos alquilas ou arilas, sendo um desses grupos corresponde a uma longa cadeia de hidrocarboneto.1
Outra ação biocida bastante importante e desempenhada por ambos os saneantes citados é a desestabilização e, consequente, ruptura da bicamada fosfolipídica (cápsula) do vírus que ocorre em decorrência das novas atrações e interações entre as moléculas.1 Assim, é a partir destes importantes conceitos químicos, as forças intermoleculares e a polaridade, que estes saneantes conseguem desnaturar as proteínas virais e contribuir para a dissolução da membrana do vírus.
Os três últimos grupos apresentados, os compostos fenólicos, o cloro e seus derivados e os peróxidos, exercem um papel diferente dos anteriores, em virtude dos seus efeitos corrosivos, resultantes de reações de oxidação e de formação de radicais a partir das espécies que os compõem, provocando lesões fisiológicas que afetam diferentes processos celulares e, consequentemente, causando a destruição do patógeno.1 Porém, o potencial risco de toxicidade e contaminação provenientes do seu uso indiscriminado, acarreta na contínua e indispensável discussão sobre a obtenção, correta utilização e finalidade de tais produtos.
O uso responsável e a compreensão do funcionamento dos saneantes abordados no artigo de Lima et al.1 colaboram para a efetividade das medidas sanitárias que auxiliam na contenção de pandemias, como a que enfrentamos neste momento, e também possibilita analisar a situação sob uma vertente interdisciplinar, unindo diferentes frentes de conhecimento (ao exemplo, química, biológica e social).
Caso queira saber mais detalhes da análise feita pelos pesquisadores Lima et al.1, inclusive verificar a tabela com alguns exemplos de diferentes princípios ativos encontrados em produtos de limpeza e o, respectivo, modo de ação biocida do saneante, aproveite que o artigo original está disponível gratuitamente e faça uma boa leitura. Como sempre, dúvidas, críticas e sugestões são bem-vindas e podem ser enviadas tanto pelas redes sociais quanto pelo e-mail petunbquimica@gmail.com.
O resumo sobre o artigo em referência e a inclusão de algumas observações são de Luís Henrique M. Camargos luis.educaquimica@gmail.com
Referências bibliográficas
1. LIMA, M. L. S. O.; Almeida, R. K. S.; Fonseca, F. S. A.; Gonçalves, C. C. S. A química dos saneantes em tempos de COVID-19: você sabe como isso funciona? Química Nova, v. 43, n. 5, p. 668–678, 2020.
2. LI, Q., Xuhua G., Wu, P., Wang, X., Zhou, L., Tong, Y., Ren, R., Leung, K. S. M., Lau, E. H.Y., Wong, J. Y., Xing, X., Xiang, N. et al. Early transmission dynamics in Wuhan, China, of novel coronavirus-infected pneumonia. New England Journal of Medicine, v. 382, n. 13, p. 1199–1207, 2020.
3. J.-Y. Li, You, Z., Wang, Q., Zhou, Z.-J., Qiu, Y., Luo, R., Ge, X.-Y. The epidemic of 2019-novel-coronavirus (2019-nCoV) pneumonia and insights for emerging infectious diseases in the future. Microbes and Infection, v. 22, n. 2, p. 80–85, 2020.
4. Boopathi, S., Poma, A. B., Kolandaivel, P. Novel 2019 coronavirus structure, mechanism of action, antiviral drug promises and rule out against its treatment, Journal of Biomolecular Structure and Dynamics, 2020. DOI: 10.1080/07391102.2020.1758788
5. HUANG, C., Wang, Y., Li, X., Ren, L., Zhao, J., Hu, Y. et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The Lancet, v. 395, n. 10223, p. 497–506, 2020.